domingo, 18 de fevereiro de 2018

You’re beautiful!


Foi numa Quarta-feira, que, num ímpeto do momento, telefonei à J. para saber se queria ir jantar fora, mas não a apanhei a tempo: estava cansada depois de um belo dia a jogar golfe, coisa que já sentia falta dado o inverno menos ameno que este ano temos tido em Houston. Combinámos para o dia seguinte e fui até casa dela, ao fundo da rua, buscá-la à porta. É raro a J. atrasar-se e, frequentemente, está pronta alguns minutos antes. 

Saí do meu carro, que tinha há menos de duas semanas, e ela ao vê-lo pela primeira vez imediatamente o admirou. Como tínhamos combinado, entrámos em casa da J. durante alguns minutos para conversar e beber um copo de vinho tinto, o que ela faz todos os dias, religiosamente, às 17h30m. Quando saímos, abri-lhe a porta do carro para entrar e liguei o aquecimento do banco dela na temperatura mínima para a não magoar — aos 92 anos, a pele da J. é frágil e ela toma medicamentos para controlar a espessura do sangue. Depois de, na última vez que visitou a minha casa, o meu cão lhe ter dado algumas nódoas negras só porque a cumprimentou, tento ser mais cuidadosa. 

Normalmente, a J. gosta de frequentar os restaurantes mais perto de casa, mas eu estava mais inclinada para irmos ao O’Porto Café, um pequeno bistro que serve pratos inspirados em cozinha portuguesa, italiana, e espanhola — é uma bocado fusão mediterrânea, apesar de Portugal não ficar no lado do Mediterrâneo, mas sim do Atlântico. O chefe, no entanto, é filho de um italiano e de uma portuguesa ou talvez seja ao contrário... 

Gosto de ir a este restaurante. Foi um dos primeiros em Houston que comecei a frequentar quando me mudei para cá, mas uma vez tive uma conversa com uma outra portuguesa que aqui vivia que me dizia que o bacalhau à Brás que era servido lá não era bom: o grande defeito é que não sabia ao bacalhau à Brás que ela fazia em casa. 

Achei uma crítica estranha porque, quando vou a Portugal, é raro qualquer prato saber ao que nós fazemos em casa, logo para mim é um critério meio-esquisito. Aliás, se eu quisesse que soubesse ao que faço em casa, fazia em casa, não ia comer fora... Mesmo o conceito de saber ao que se faz em casa é ilusório. Uma das minhas melhores amigas em Portugal tinha mãe goesa e muitos dos pratos que ela fazia sabiam a cominhos, o que eu adorava porque, na minha casa, quase nunca se cozinhava com cominhos, ou seja, cada casa tem o seu sabor.

Fomos pela Bissonett e a J., que ainda conduz, ficou feliz por não ter de passar pela via rápida que a assusta um bocado. Note-se que, ainda no ano passado, a J. foi a Austin de autocarro sozinha — mais de duas horas de viagem —, logo diverte-me pensar que uma via rápida dentro da cidade lhe causa ansiedade. Antes de chegarmos ao cruzamento da Wesleyan com a Richmond, entrei no parque de estacionamento e fui censurada pela minha companheira, que pensava que eu estava a tentar fugir ao semáforo, mas disse-lhe que tínhamos chegado ao strip mall onde ficava o restaurante. 

A minha mesa preferida fica junto à janela e nesse dia encontrava-se reservada. Duas mesas de jantar estavam livres: uma a meio do restaurante, outra mais para o interior. Escolhi a que ficava mais longe porque na mesa ao lado estava sentado um casal de pessoas mais velhas, o que achei encantador, pois gosto de observar pessoas: people-watching é um passatempo tipicamente americano!

Coube-me escolher o que comer e bebemos água porque já tínhamos tratado do vinho. Como os pratos são mais estilo tapas, achámos melhor partilhar várias coisas. Um dos pratos que escolhi foi pastéis de bacalhau, que são servidos com uma tacinha com molho picante. O molho não é tradicional, nem a J. gosta de picante, mas os pastéis não são maus de todo e ela apreciou-os bastante. Também impressionaram os nossos vizinhos do lado, o tal casal idoso, o suficiente para nos perguntarem o que era: eu respondi e a J., triunfante, explicou que eu era de Portugal e os pastéis de bacalhau eram uma comida tradicional portuguesa. 

Também petiscámos um queijo de cabra e, no todo, passámos uma noite bastante agradável. Para o final, o homem do casal ao lado disse à J., à frente da companheira, “You’re beautiful!” A J. agradeceu e ele acrescentou que ela tinha qualquer coisa que reluzia. Depois trocaram idades: eles tinham à volta de 87 e a J., com os seus 92, sentiu-se gloriosa: eram uns jovens, dizia amavelmente. Despedimo-nos e regressámos a casa ambas contentes.


Nessa noite, pensei no #metoo: num futuro próximo, será possível dizer a uma pessoa desconhecida “You’re beautiful!” sem que se seja acusado de assédio?

1 comentário:

  1. "Nessa noite, pensei no #metoo: num futuro próximo, será possível dizer a uma pessoa desconhecida “You’re beautiful!” sem que se seja acusado de assédio?"

    Claro que sim!
    Belo texto.

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